Meu café jamais vai matar tua fome

Entre a difusão do café no Brasil e a implantação de uma filial do Starbucks no país, há mais sementes do que essa cronista consegue contar. Com a chegada das primeiras mudas, o café transformou-se em produto base da economia tupiniquim. Mudou o ciclo econômico, afetou a política (o acordo selado pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais foi denominado “política do café com leite”) e ganhou novos sabores, sendo incorporado a drinks y otras cositas más.
Apesar dessa nova roupagem, que adquiriu status cool, o café tradicional resiste. Sem essas modernidades, que fazem do café mera água suja. É pra descer queimando a língua. Nada de simpatia, superstição, café coado na calcinha. É preto, forte, quente, amargo. O estereótipo desse consumidor é um homem feito, de bigode bem penteado, funcionário público, que faz uma pausa entre as burocracias para abastecer o organismo desse combustível. Todavia, analisando bem, o único local onde estereótipos são verdade é no inconsciente coletivo. Na realidade, a minha maior musa cafeeira é uma jovem estudante de psicologia, com um olhar belíssimo.
Marina estudou comigo durante o Ensino Médio e, regularmente, queixava-se de problemas para dormir. Seus horários eram invertidos, me fazendo questionar se ela estava com problemas de saúde. A roqueira Pitty foi mais sensata que eu, quando cantou “nada é orgânico, é tudo programado”. Minhas dúvidas acerca dos hábitos noturnos de Marina só duraram até eu descobrir que ela chegava a beber oito xícaras de café em um dia. Nem se coasse na calcinha, teria como amarrar um sono bom. Mesmo cansada, não desistia de cumprir suas obrigações. Andar café eu vou, café não costuma falhar.
Quem prepara essa garrafa térmica de muitos goles é Mozart, irmão de Marina. Segundo a adicta, o café de Mozart é a melhor parte do seu dia. Pessoalmente, considero essa definição um desaforo, visto que eu também faço parte do dia de Marina, mas isso é assunto para outra crônica. Nessa, é imprescindível saber que a grafia do nome Mozart é idêntica à do compositor austríaco, mas a fonética é muito diferente. Mozart, brasileiro, atende por Mozá, sílaba tônica tão original quanto seu café.
Comparado ao elixir da juventude, o café de Mozart só não consegue solucionar poucos problemas. Com a iminência do ENEM, vi minha fiel amiga desesperar-se. Embora tivesse estudado o ano inteiro, Marina me telefonou após o primeiro dia de prova, chorando e extremamente aflita. Ciente de que o problema deveria ser encarado de frente e ainda teria outro dia de sabatina, sugeri um relaxamento provisório:
– Marina, peça para Mozart fazer café. Vai te acalmar um pouco.
– Eu odeio Mozart!
Percebam que Marina catalisou toda sua frustração em apenas odiar Mozart. Afinal, odiar o irmão? Tudo bem. Odiar o café? Jamais.
O desfecho desse dia de angústias e avaliações, você, caro leitor, já deve imaginar. Introduzi Marina nesse texto como uma jovem estudante de psicologia e, atualmente, é impossível ingressar na UFPB sem ser aprovado no ENEM. E quanto a Mozart, brasileiro, creio que ainda não compôs nenhuma peça musical – mas dizem que seu café faz bem aos cinco sentidos.

Rita Lee escreve biografia para ovelha nenhuma se sentir negra

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O grande problema da História, aquela com H maiúsculo, é que fatos são muito difíceis de serem constatados. Há inúmeras versões. A cantora e compositora Rita Lee, que fez História na música brasileira, resolveu contar como ela mesma enxergou os acontecimentos em “Uma Autobiografia”, lançada esse mês pela Globo Livros.

A trajetória não é incomum: uma mocinha, fascinada por artistas e animais, quer aprender a tocar. Seu pai, dentista, negocia um tratamento por aulas de piano. Após muito ensaio, a apresentação. Diante da plateia, a caçula faz xixi nas calças. Muitos disseram para a menininha parar ali, já que tinha medo de palco. No meio do caminho, ela conheceu esse tal de Roque Enrow, que a mãe não entendia muito, e o palco passou a ser seu lugar seguro. Coisas da vida. Seja com Os Mutantes, seja em carreira solo, Rita Lee cantou canções iluminadas de sol e fez tudo que queria fazer.

A própria Rita escreveu o livro, dispensando ghost writer. É a maior virtude do texto, devido à autenticidade. Rita Lee se arrisca a fazer literatura com uma linguagem rock and roll, transformando as palavras em suas maiores aliadas. A prosa é original e cheia de estilo, misturando gírias, expressões em outras línguas e termos técnicos. É possível imaginar a cantora falando o que está escrito. O máximo de intervenção externa é um fantasminha (escrito por um jornalista e fã), que aparece, ocasionalmente, para dar maior precisão a alguns dados.

Se, quando alguém escreve sobre si, tende a omitir eventos que lhe causam vergonha, Rita faz o oposto: escancara toda a porra louquice. Fala das travessuras feitas com as irmãs quando criança (algumas de muito mau gosto para serem consideradas apenas traquinagem), assume as drogas, a bipolaridade e mais meia dúzia de transtornos. É para ovelha nenhuma se sentir negra.

E quando bota em xeque as desavenças, Lita Ree adota uma postura “diga que me odeia, mas diga que não vive sem mim”. Fala dos Mutantes (que a expulsaram da banda), de Ezequiel Neves (parceiro de Cazuza) e só não fala mais sobre uma confusão em um show, que resultou em cadeia, porque o ocorrido é recente e o processo ainda está correndo. Critica os músicos e, em seguida, tenta se mostrar superior. Diz que, mesmo depois de expulsa dos Mutas, coordenou a iluminação de um show deles. Sabemos que é Rita, mas não Santa.

Em diversas passagens, Rita se autodeprecia, especialmente a habilidade como cantora e musicista. A cantora, na verdade, é o conjunto completo. Demonstra extrema preocupação com a totalidade do show: passa som antes, se maquia, busca o figurino ideal, elabora números… Se ela quiser contrariar João Gilberto, admirador de sua voz, paciência. Consagra-se como roqueira, pela atitude, pela inovação, pela preocupação em fazer boa música, sem vender a alma. E isso vale mais do que umas notas afinadas. A modéstia passa a prejudicar o livro, quando ela esconde a relevância de certas obras, como o épico Fruto Proibido. O LP, cor de rosa choque, marcou gerações. De autoria feminina, sensual, alegre e de destaque nacional, é tratado no livro como uma bobagem.

Aliás, essa é a principal lacuna da biografia. Os detalhes sobre o processo criativo são escassos. Sabe-se que nos Mutas, as canções eram assinadas em conjunto, não importando a real autoria. Com Roberto de Carvalho, por quem ela declara seu amor o livro inteiro, as parcerias parecem mais justas. São nos momentos de fazer música com Roberto que ela se mostra mais alegre. E sua satisfação maior, revela, é ter feito um bocado de gente feliz. Com essa biografia, aposto que o número de pessoas aumentou. Rita segue fascinando o público, mesmo já fora dos palcos, e deixando mais uma legião com “mania de você”.

Deixe a música de Liniker bagunçar você

Assistir a um filme antigo com uma criança carrega certos misticismos. Entre eles, está a célebre pergunta, feita durante os longos créditos: o filme não vai começar? As novas gerações (incluindo a minha) querem consumir arte com pressa. A Música não é diferente. Canções compridas, como Like a Rolling Stone, do Bob Dylan, não tocam em rádios, nem são ouvidas até o final em serviços de streaming. Ninguém mais tem paciência para Faroeste Caboclo ou para um rock progressivo. Portanto, quando coloquei para tocar Remonta, primeiro CD de Liniker e Os Caramelows, tive uma surpresa. O disco foi feito para ser degustado.

A introdução é instrumental, as faixas beiram os seis minutos e exigem uma imersão do público. Não pela complexidade lírica, mas pela necessidade de sentir plenamente o que a banda propõe. Liniker versa sobre e com a linguagem universal: o amor. O sentimento independe de gênero ou opções, é livre, sem amarras sociais ou estereótipos. Quase sem querer, Remonta é um ato político, um grito de igualdade para pessoas diferentes. Começa com uma faixa homônima ao álbum, que deixa suas intenções claras quando brada “remonta/ que eu não quero mais/ saber de desamor”.

Depois dessa justa refutação, somos apresentados a três releituras das músicas já conhecidas. “Caeu”, “Zero” e “Louise du Brésil” ganharam novos arranjos e continuam irresistíveis. Márcio Arantes, parceiro musical de Maria Bethânia, transformou as execuções e manteve a energia. O trio, divulgado no EP “Cru”, foi responsável por impulsionar a carreira de Liniker. Oriundo do cenário independente, o jovem de 21 anos tinha essas canções como cartão de visita. Com elas, conquistou seu público, chamou atenção da mídia e conseguiu, por meio de um financiamento coletivo, Remontar.

Entre as novidades, estão “Tua”, carregando extrema sensualidade, e “Lina X”, que expõe influências de soul e funk. A black music também se faz presente em Prendedor de Varal, que invoca Tim Maia. “Não adianta vir com Guaraná pra mim/ o que eu quero é chocolate” se mistura ao groove dos Caramelows e o resultado é um banquete.

Não é um disco perfeito. No meio de tanta inovação, “Sem nome, mas com endereço” se entrega à pieguice. É cafona, clichê e oposto do que se espera. Em seguida, “Você fez merda” vem como uma tentativa fracassada de debochar de quem já lhe magoou. No mesmo âmbito, o pernambucano Johnny Hooker faz melhor uso do escárnio.

Para encerrar gloriosamente, surgem a descontraída “BoxOkê” e a intensa “Ralador de Pia”. Negra e transgênero, Liniker empodera-se cantando. Seu som é leve, mas com atitude. Fez um disco sobre ter o coração partido, enquanto busca a própria identidade. E quem nunca esteve em alguma dessas situações, infelizmente, um dia terá que desmontar.

Fevereiro

– Não tranca a porta…

– É costume.

– Por isso mesmo.

– É só um banho. Você já tomou o seu, Ju.

– De porta aberta.

– Porque você está acostumada.

– Porque eu confiei. Só tem eu aqui. Ninguém vai entrar, eu te prometo.

– É só um banho. Me espera acordada?

Ela desfez o semblante, sério, para dar espaço a um sorriso com os cantos da boca, que passava igual segurança. Cerrou os olhos por um instante mais comprido do que o piscar, manteve o sorriso e respondeu baixinho, quase sussurrando:

– Claro.

Maria Júlia evitava ao máximo comprometer-se com juras, porque sabia que precisaria cumpri-las depois. O sono teve que ser controlado.

Ele deixou os chinelos no corredor e a bermuda xadrez, com os tons de vermelho, azul e branco já desbotados, não demorou a encontrar o cesto. Havia sido comprada anos antes, com o primeiro salário. Eduardo dizia que lhe trazia sorte. Da boca para fora, porque não a escolhia para ocasiões necessariamente atreladas à fortuna. Eduardo vestiu essa peça em encontros, no cinema, na praia e na casa do avô, um dia após o seu assassinato. Tempos bons e temporais. A bermuda era o acaso.

– Já volto.

Deu um beijo na testa de Ju e seguiu em frente. A camisa branca era nova, com um símbolo no peito, responsável pelo valor absurdo da roupa. Era presente. De tanta chuva, suor e cerveja, perdera a condição de imaculada. Também já havia encontrado o cesto de roupa suja. Era quarta-feira de cinzas e as peças tinham cheiro de carnaval. Eduardo, mesmo despido, continuava de fantasia. Só por tentar ser feliz, não podia pendurar as fantasias no cabide.

Com as máscaras já batidas e as fantasias de criança, Eduardo teve que improvisar para o último dia do feriado. Pediu a Ju para pintar-lhe o rosto. De repente, um raio vermelho desceu pela sua testa, cobrindo os olhos, nariz e boca, ignorando as sobrancelhas. Um traço azul, contornando o desenho, terminava de eletrizar Eduardo por inteiro. Ele podia ser herói, apenas por um dia. Eduardo se jogou na folia acompanhado por Ju, que também precisou inventar. Diante de tanto ódio nas ruas, a menina vestiu-se de verde e foi de esperança. Há uma grande diferença entre ser e ter. Ela desejava possuir esperança, mas acabava representando-a para muita gente. Queria sê-la, mas o fardo da inevitável decepção lhe doía as costas. Não se pode confiar a própria felicidade aos outros. Diferente do raio, os planos possuem um recurso impossível de ser desenhado. Traçar planos para alguém, por mais que seja você, é desenhar linhas com tinta invisível, deixando o papel livre para ser riscado em cima. Destrinchar a narrativa de outra pessoa, então, é sequer poder segurar o papel.

Comentou, voltando para casa:

– As pessoas deveriam ser quem querem o ano inteiro. Uma pena que o feriado acabou logo.

– Quem disse?

Eduardo não sabia muito, mas sabia que, quando a tinta perdesse a forma de raio e escorresse pelo seu rosto, ele não mais seria camaleão. Iria embora a maquiagem, ficariam os sonhos, os traumas e os dentes tortos. Já Júlia… Mesmo despida, continuaria a ser a esperança. Talvez a previsível imprevisibilidade fosse parte do seu charme. Eduardo não sabia, só se permitia fascinar.

Ali, no banheiro do apartamento alugado na praia, Eduardo encarava o próprio reflexo com um pouco desse encanto. Lembrou que havia sido batizado com o nome do pai, para que seguisse seus passos. Nem quando criança, permitiram que fosse chamado de Dudu. Queriam que ele desse peso à cada sílaba, para honrar o nome. Em frente ao espelho, por mais que buscasse, de todas as formas, uma expressão física que lembrasse o pai, Eduardo era capaz de enxergar apenas a si mesmo.

O que seus pais viam como fraqueza, para Eduardo, foi um ato de bravura. Durante a transição da infância para a adolescência, saiu da casa dos pais e foi morar com o avô e a avó. Ele preferia ter que ajudar com os serviços, longe da escola e da casa dos amigos, com todas as dificuldades inerentes a morar com um senhor de idade avançada, do que àquela família. A família pertencia apenas ao pai. Aliás, pouco importava de quem era. Só não era de Eduardo.

Ele riu, imaginando o que seu pai faria, caso o visse assim. O gel no cabelo completava o visual. Ele tirou um algodão do saco, destampou o removedor de maquiagem e misturou os dois objetos. Era a terceira, talvez quarta vez, que a situação se repetia nesse mês. A tinta foi transferida do seu rosto para o algodão e o raio vermelho ia perdendo a força. Gastou três algodões e ligou a torneira, de olhos fechados, buscando o sabonete com as mãos. Se a pia fosse sete centímetros mais alta, Eduardo não precisaria curvar-se.

Encarou o rosto novamente. Dessa vez, com a cara limpa. Deixou o polegar em uma bochecha e os outros quatro dedos, em outra, sentindo a pele, lisa. Queria ter barba, igual a do avô. Permanecia imberbe, por causa de suas feições. Não combinava. Tinha cara de Dudu. Ju talvez tivesse tentado chamá-lo assim, mas não era preciso. O resto do seu corpo carregava influência demais, para que ele não estivesse perto. A boca dele, já era dos dois, mas cada um falava o que pensava. Ele olhava para o próprio nariz e lembrava-se dela, com um piercing fino, no lado direito. Eduardo brincava:

– Leonardo da Vinci dizia que é no nariz que o caráter se cria, no rosto. Tu tem tanta personalidade, Ju, que não coube só no nariz. Aí precisou de um acessório.

Ju podia chegar no meio da tarde, com um copo de café ou uma taça de champanhe. Eram tentativas de despertar. Apresentou-se à prima de Eduardo como namorada; aos amigos dele, como sua advogada; e quando conversou com a avó, meses após o início do relacionamento, respondeu:

– A gente está se conhecendo melhor.

Eduardo passou a vida tentando conhecer tanta coisa, principalmente as razões. Por que ele estava ali? Por que a arquitetura? Por que sua avó deixou o portão aberto naquele dia? Por que seus pais eram tão distantes, mesmo no quarto ao lado? Por que a ex, dona de tanta estabilidade, que ele sabia como o sexo iria começar e terminar, foi embora? Por que, quando a avó deixou o portão aberto, não aconteceu apenas um assalto? Por que seus amigos entraram na sua vida? Por que Maria Júlia? Por que?

Ju o conheceu no escritório em que ele trabalha. Seu projeto, um condomínio à beira-mar, acarretaria tantos problemas judiciais, que a construtora enviou suporte legal. Eduardo explicou para Júlia todas as implicações da edificação e ela deixou um número para contato anotado em um post-it amarelo, em cima da mesa. Era o telefone dela, não da empresa. Desde então, Eduardo tentava conhecê-la.

Ele entrou debaixo do chuveiro, embaçando o box e seus pensamentos. Queria aproveitar o silêncio incompleto, ajudado pela água caindo, para organizar-se. Entretanto, sempre que queria projetar algo, o nome de Maria Júlia vinha a sua cabeça. E que nome bonito… Não só de falar. De ouvir, de pensar, de sentir. Quanto mais ele reduzia o nome, mais gostoso ficava de sentir. Maria Júlia, Maju, até chegar em Ju, duas letras cheias de altos e baixos, nada muito certo, nada muito reto, mas com uma explosão de emoções em cada uma de suas curvas. Ju. Ela se opunha ao comportamento metódico dele. Então, Eduardo enrolou-se em uma toalha e saiu do banho.

Girou a maçaneta. Não havia passado a chave. Ju o esperava, sentada na cama, trocando os canais da televisão. Eduardo caminhou em sua direção e deu-lhe um beijo, daqueles que não importa há quanto tempo o casal está junto; os dois sempre ficam sem graça depois. Ele esperava um cafuné, pausado, com a paz deslizando pelos dedos, que talvez nunca chegasse.  Eduardo a observou. Os cabelos, modulados pelo vento; o corpo, assim como o nome, cheio de curvas; o jeito de empilhar os travesseiros, para sentar, encostada na parede…  Ju lastimava o fim do feriado. Deitado ao lado dela, consumando da liberdade definitiva, Eduardo sorriu. Percebeu: alguns carnavais nunca têm fim.

Apresentação de “Paraquedas”

Lancei um livro! É. “Paraquedas”, pela Editora Ideia. Poesia. Ninguém lê poesia, eu sei, mas me comove muito e acho que é errado escrever algo que não te emociona.
Sabe quando dizem que um livro vai te dar muito orgulho e muita vergonha? É verdade. Sempre que alguém fala dele, me dá um frio na barriga enorme.
Fiquei muito feliz, porque ele esgotou ainda na sessão de autógrafos. Depois, foi um problema: estou devendo livro a muita gente querida 😛
Alguns amigos perderam meu discurso, durante o lançamento. Como pediram, publico abaixo o que foi planejado. Na hora, obviamente, eu suei, surtei e falei um pouco mais.

Boa noite!
Primeiramente, quero agradecer a presença de todos. […]
E já que estão aqui, quero também compartilhar uma das minhas mais tenras memórias de infância. Éramos eu, meus pais e minha irmã, pessoas a quem o livro é oficialmente dedicado, sentados no sofá da primeira casa onde moramos, assistindo ao Acústico MTV de Cássia Eller. A segunda música do DVD é Malandragem. Reza a lenda que Cazuza e Frejat compuseram a música pensando em Ângela Roro, que debochou da letra. Não conseguiu imergir no eu-lírico ainda no primeiro verso, “quem sabe eu ainda sou uma garotinha”. Embora, na voz de Cássia, essa canção tenha sido imortalizada, imagino o que ambas pensaram da seguinte frase: “eu sou poeta e não aprendi a amar”. Eu cresci, as músicas desse Acústico continuaram a ser a trilha sonora da minha vida, contudo, esse verso nunca deixou de me incomodar.
Que raio de poeta é esse que não ama? Se, no século XXI, não existe mais a obrigação de métrica, rima e muita dor, considero apenas duas coisas essenciais para o exercício da poesia: uma caneta BIC e o peito cheio de paixão. É o amor que move o poeta, que está no andar das musas, nas calçadas, nas ruas e na infinitude particular contida no brilho efêmero de uma estrela. É a falta de amor, também, que inquieta tanto, a ponto de criar a necessidade de escrever.
Claro, na literatura mundial, houveram os hipócritas: Vinícius de Moraes escreveu o belíssimo “Soneto da Fidelidade”, mas teve oito esposas (sem mencionar as incontáveis amantes). Ele só fazia do amor infinito enquanto durasse, não sendo de tudo, a ele, atento. Acredito que tenha havido o maior encanto, que dele se encantou mais seu pensamento, mas cadê o tal zelo, dito “sempre e tanto”? Para onde vai o amor, quando o cuidado vai embora? Aliás, será que um amor, sem zelo, realmente esteve lá?
Tenho minhas dúvidas. Já não sou mais tão criança a ponto de saber de tudo. Talvez o Leléu, de Lisbela e o Prisioneiro, saiba mais que eu. Na adaptação cinematográfica do Guel Arraes, ele diz: “o amor é como um precipício. A gente se joga e torce para nunca chegar ao chão. Às vezes, durante a queda, você acha que está voando, mas na verdade, está caindo.” Portanto, nesses tempos em que falta esperança e o amor é esse abismo, façamos da poesia um paraquedas para amortecer o destino. Muito obrigada!

Soneto Impedido

Quatrocentos homens ricos e brancos
no domingo até às onze no trampo
gritam por um futuro de fartura,
mas só querem fartura na fatura.

Em nome do pai, do filho, da neta,
ninguém vai dobrar a meta (que meta?).
Em nome de Deus, não há golpe: é gospel.
Bons pais, honestos, que vão pro céu (que céu?).

Pelo meu país, só vota palhaço.
Pelo sim, pelo não, voto em quem casso.
Em terras tupiniquins, um cacique

talvez nos guie com menos chilique.
Na Câmara, ninguém me representa.
Sermos tantos esquecidos me atormenta.

18/04/2016
Clara

3 filmes relacionados à Páscoa

Há pessoas que ficam em jejum, há quem reze, há famílias reunidas, há gente só curtindo o feriado, há esperança, há quem veja Os Dez Mandamentos no cinema. Eu costumo ver filmes. Eis uma pequena lista de bons longas para assistir enquanto não liberam os ovos de chocolate.

1) Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewison: é um musical inusitado, que aborda os últimos dias de Jesus. O elenco é excelente (destaque para o ator que faz Judas) e sempre que alguém abre a boca para cantar, provoca arrepios. Apesar da ousadia e dos momentos engraçados, é bem respeitoso.

2) Desfile de Páscoa, de Charles Walters: sou obcecada pelo Fred Astaire e o mundo inteiro sabe. Dessa vez, o sapateado dele é acompanhado pela Judy Garland, um romance fofo e uma data comemorativa.

3) A vida de Brian, de Terry Jones: Monty Python é o grupo melhor grupo cômico da história. Nessa sátira, acompanhamos Brian, um cidadão comum confundido com o messias. É para rir até soluçar.

Bônus:

(500) Dias com Ela, de Marc Webb: na verdade, esse filme não tem nada a ver com o coelhinho ou Jesus, mas lembro de tê-lo assistido no sábado de uma semana santa que antecedeu muitas mudanças na minha vida. Vi com uma pessoa amada, curtindo a trilha sonora e odiando um personagem. Good memories.

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Lula lá: decresce a esperança

O pioneirismo egípcio é notável: a sociedade desenvolveu-se econômica e socialmente na Antiguidade. Escrita, pintura, arquitetura e mitologia foram altamente estimuladas às margens do Nilo. Com a abundância do papiro, suas fibras podiam ser utilizadas na construção de instrumentos, como cordas. Contudo, sua função mais lembrada é relacionada à fabricação do papel.

Escribas costumavam transcrever fatos, assuntos religiosos e questões políticas nos papiros. Para aumentar as vendas, propagandas também eram feitas. Essa forma primitiva da publicidade já antecipava o poder de tal meio de comunicação. A mídia é grande responsável pelas impressões sobre alguém, a prosperidade de empresas e a organização social contemporânea.

Não fossem as campanhas publicitárias comandadas pelos marqueteiros Duda Mendonça e João Santana, o Partido dos Trabalhadores não teria vencido tantas eleições consecutivas. Por trinta dias, o cineasta João Moreira Salles acompanhou os bastidores da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da República, em 2002. Seus registros viraram um documentário: Entreatos.

Nele, reuniões, telefonemas e programas eleitorais explicam súbitas mudanças de rumo e discurso do agora ex-presidente investigado. É visto também um Lula brincalhão, pouco sério, que todos estamos cansados de ver. O filme é uma aula de merchandising e política. Mostra quem manda, como manda e porque manda. A mídia deveria informar e garantir a democracia, mas esse plano é utópico. Escrever sobre determinado assunto e publicá-lo em determinado veículo já é um posicionamento. A imparcialidade é impossível.

Em um voo ocupado por Lula, José de Alencar, Antônio Palocci e outros então petistas ferrenhos, havia um debate acerca do futuro. O documentário registra a seguinte pérola de um engravatado: “eu não sei como é que vai ser o governo desse moço, mas que vai ser engraçado, vai”. A frase antecede a longeva administração petista. Domingo passado, houve o maior protesto da história do Brasil. A inflação está altíssima. Corrupção e desonestidade estão evidentes. Os índices de desemprego são assustadores. É difícil rir diante da crise.

Teatro dos Vampiros, canção da Legião Urbana, possui o seguinte trecho: “acho que não sei quem sou/ só sei do que não gosto”. Vejo-me na mesma posição, sem saber o que irá acontecer ou qual é a melhor alternativa para a nação. Só sei que não quero não viver em uma democracia. Não quero viver em uma democracia presidida por uma pessoa tão desorganizada quanto Dilma Roussef. Não quero viver num país presidido por Michel Temer, que pode ser tudo, menos decorativo. Não quero viver sob as leis de Eduardo Cunha, que se aproveita da situação. Aliás, Temer e Cunha devem estar, nesse momento, elaborando planos e pedindo a bebida que pixxxxxxxca. Regina Duarte, lá em 2002, tinha razão em ter medo.

O tempo dos espíritos

Para ser eleito o primeiro presidente socialista do Chile, Salvador Allende precisou candidatar-se quatro vezes ao cargo. Das três primeiras, perdeu e virou senador por meio das eleições do ano seguinte. Da quarta, conquistou o poder executivo, mas seu mandato não foi duradouro. O golpe militar de 11 de setembro de 1973, três anos após a posse de Allende, impôs a ditadura de Augusto Pinochet. Desde o início de sua vida política, em Valparaíso, Salvador envolveu-se em diversas manifestações de ideologia esquerdista e não abriu mão da vida pessoal em nome do governo. Salvador casou-se e teve três filhas: Carmen, Beatriz e Isabel. Entretanto, foi outra Isabel Allende, filha de seu primo, quem usou o cenário político do Chile para contextualizar suas ficções.

Em A Casa dos Espíritos, magnum opus de Isabel, é narrada a história de três gerações da família Del Valle-Trueba. Rosa Del Valle, uma menina de cabelos verdes, irá casar-se com Esteban Trueba, que passa dois anos longe, tentando fazer fortuna antes de desposá-la. Clara, sua irmã, prevê uma morte na família. Quando a profecia se concretiza e Rosa morre envenenada (um engano, já que o veneno era destinado ao pai das duas), Clara se culpa e fica muda. Volta a falar anos depois, anunciando que irá casar. Esteban aparece na porta dos Del Valle, procurando uma pretendente. O relacionamento dos dois “prospera” e dele nasce uma filha, Blanca.

A construção dos personagens é minuciosa. As mulheres da família, Clara, Blanca e, futuramente, a neta Alba, compartilham mais do que nomes análogos semanticamente. São fortes e dons paranormais permeiam as suas vidas. Clara, claríssima e clarividente, é a mais singular do livro. Desde cedo, cultivou o hábito de escrever coisas importantes (passando a anotar, posteriormente, as trivialidades também). Blanca apaixona-se, ainda criança, pelo descendente de um funcionário da fazenda do pai, Pedro Terceiro García. O garoto adota ideias anarquistas, inspirando Blanca a rever os princípios morais do seu lar. Alba nasce nesse meio e, saindo da adolescência, participa de movimentos estudantis.

Durante a narrativa, Esteban enriquece e vira um homem influente. Publicamente, era um político respeitado. Em casa, era canalha: chega a bater na esposa e na filha. O comportamento de Esteban é ranzinza e violento. Sua posição, sempre muito conservadora, é confrontada por alguns personagens. Com o passar das páginas, a ditadura vai se instalando no Chile e os horrores desse sistema tirânico são expostos.

O estilo de Allende é marcante, já que sua prosa mescla assuntos sociais aos íntimos, assim como a magia é misturada à memória. É impossível não ficar encantado com a vida, os mortos, os caminhos tortos e o sangue latino dos Trueba.

Se eu corresse

Só entendo que preciso acumular menos cansaço quando acordo num sábado de manhã e percebo que dormi por quase catorze horas seguidas. Se eu tivesse forças, na véspera, teria corrido da obviedade. Faminta por existência social, sairia em disparada pela rua. Exausta, graças ao vestibular, somente apaguei. Acabei me presenteando com o dia seguinte livre, apesar de todas as obrigações pendentes.

Encerrei o sábado mais relaxada, realizando uma sessão caseira de A Vida Secreta de Walter Mitty (The Secret Life of Walter Mitty, 2013). Coincidentemente, o personagem-título sai correndo em determinada cena, decidido a fazer algo grandioso. É um filme do Ben Stiller em todos os aspectos: sem ritmo e prisioneiro de cacoetes cômicos, além de protagonizado e dirigido por ele. Em sua viagem mais memorável, Walter possui um acompanhamento musical “extraterrestre”. Dono de uma imaginação fértil, o protagonista delira e foge da realidade com frequência. Seu novo chefe (outro personagem mal construído, mais parece uma caricatura) o apelida de Major Tom, por causa do astronauta que flutua em Space Oddity, de David Bowie.

O camaleão do rock contribuiu para o cinema com tanta irreverência quanto para as outras artes. Emprestou seu corpo a um vampiro, a uma personalidade religiosa, ao rei dos duendes e ao maior artista do movimento Pop Art. Influenciou a produção de diversas outras obras, mesmo sem atuar. Marc Spitz, um dos muitos biógrafos de David, afirma que Velvet Goldmine (idem, 1998) não pega emprestado apenas o título de uma de suas canções, porque captura também sua essência e tenta reproduzir trechos biográficos. Entretanto, os filmes que mais dialogam com o meu íntimo, aqueles em que as imperfeições são celebradas ao som de Bowie, não se encaixam nessas categorias.

Walter Mitty não foi o primeiro a deslocar-se velozmente com uma trilha sonora inebriante. Frances Ha, em filme homônimo, está passando por problemas profissionais, assim como Walter. Seus 30 anos estão se aproximando de uma forma que nem Balzac poderia prever.      Ela não obtém reconhecimento profissional, ainda não comprou a casa própria e não corresponde às expectativas dos outros. Com todo o charme de uma fotografia em preto e branco, Frances se redescobre em Nova York enquanto ouvimos Modern Love. A música, do álbum Let’s Dance, embala também uma festa adolescente em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (idem, 2014), cujo protagonista é um jovem cego e gay.

Se a ideia de tocar Bowie num momento de descontração entre pessoas nascidas nos anos 2000 soar anacrônica, o cinema nacional encaixa melhor Five Years, reproduzida em California (idem, 2015), sobre a adolescência na “década perdida”. As angústias inerentes a essa fase permanecem as mesmas, mas as tendências musicais costumam variar de acordo com a geração. Mais de 300 mil reais foram investidos na trilha sonora, o maior trunfo do filme. As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower, 2012), que também retrata a juventude nos anos 80, traz Heroes num momento digno de fazer o espectador sentir-se infinito.

Bowie virou estrela há quase dois meses, mas se faz eterno através do cinema, do desejo de sair correndo da zona de conforto, dos animais de estimação batizados de Ziggy, da camisa de Wesley Safadão, dos brindes aos desajustados, da mágica de suas canções e do raio pintado por uma amiga no meu rosto para o meu último carnaval no colégio.

P.S.: em A Vida Marinha com Steve Zissou (The Life Aquatic with Steve Zissou, 2004), Seu Jorge (sim, o mesmo Seu Jorge que canta Burguesinha) interpreta várias versões de Bowie em português. É algo tão bizarro que só Wes Anderson faria.