– Não tranca a porta…
– É costume.
– Por isso mesmo.
– É só um banho. Você já tomou o seu, Ju.
– De porta aberta.
– Porque você está acostumada.
– Porque eu confiei. Só tem eu aqui. Ninguém vai entrar, eu te prometo.
– É só um banho. Me espera acordada?
Ela desfez o semblante, sério, para dar espaço a um sorriso com os cantos da boca, que passava igual segurança. Cerrou os olhos por um instante mais comprido do que o piscar, manteve o sorriso e respondeu baixinho, quase sussurrando:
– Claro.
Maria Júlia evitava ao máximo comprometer-se com juras, porque sabia que precisaria cumpri-las depois. O sono teve que ser controlado.
Ele deixou os chinelos no corredor e a bermuda xadrez, com os tons de vermelho, azul e branco já desbotados, não demorou a encontrar o cesto. Havia sido comprada anos antes, com o primeiro salário. Eduardo dizia que lhe trazia sorte. Da boca para fora, porque não a escolhia para ocasiões necessariamente atreladas à fortuna. Eduardo vestiu essa peça em encontros, no cinema, na praia e na casa do avô, um dia após o seu assassinato. Tempos bons e temporais. A bermuda era o acaso.
– Já volto.
Deu um beijo na testa de Ju e seguiu em frente. A camisa branca era nova, com um símbolo no peito, responsável pelo valor absurdo da roupa. Era presente. De tanta chuva, suor e cerveja, perdera a condição de imaculada. Também já havia encontrado o cesto de roupa suja. Era quarta-feira de cinzas e as peças tinham cheiro de carnaval. Eduardo, mesmo despido, continuava de fantasia. Só por tentar ser feliz, não podia pendurar as fantasias no cabide.
Com as máscaras já batidas e as fantasias de criança, Eduardo teve que improvisar para o último dia do feriado. Pediu a Ju para pintar-lhe o rosto. De repente, um raio vermelho desceu pela sua testa, cobrindo os olhos, nariz e boca, ignorando as sobrancelhas. Um traço azul, contornando o desenho, terminava de eletrizar Eduardo por inteiro. Ele podia ser herói, apenas por um dia. Eduardo se jogou na folia acompanhado por Ju, que também precisou inventar. Diante de tanto ódio nas ruas, a menina vestiu-se de verde e foi de esperança. Há uma grande diferença entre ser e ter. Ela desejava possuir esperança, mas acabava representando-a para muita gente. Queria sê-la, mas o fardo da inevitável decepção lhe doía as costas. Não se pode confiar a própria felicidade aos outros. Diferente do raio, os planos possuem um recurso impossível de ser desenhado. Traçar planos para alguém, por mais que seja você, é desenhar linhas com tinta invisível, deixando o papel livre para ser riscado em cima. Destrinchar a narrativa de outra pessoa, então, é sequer poder segurar o papel.
Comentou, voltando para casa:
– As pessoas deveriam ser quem querem o ano inteiro. Uma pena que o feriado acabou logo.
– Quem disse?
Eduardo não sabia muito, mas sabia que, quando a tinta perdesse a forma de raio e escorresse pelo seu rosto, ele não mais seria camaleão. Iria embora a maquiagem, ficariam os sonhos, os traumas e os dentes tortos. Já Júlia… Mesmo despida, continuaria a ser a esperança. Talvez a previsível imprevisibilidade fosse parte do seu charme. Eduardo não sabia, só se permitia fascinar.
Ali, no banheiro do apartamento alugado na praia, Eduardo encarava o próprio reflexo com um pouco desse encanto. Lembrou que havia sido batizado com o nome do pai, para que seguisse seus passos. Nem quando criança, permitiram que fosse chamado de Dudu. Queriam que ele desse peso à cada sílaba, para honrar o nome. Em frente ao espelho, por mais que buscasse, de todas as formas, uma expressão física que lembrasse o pai, Eduardo era capaz de enxergar apenas a si mesmo.
O que seus pais viam como fraqueza, para Eduardo, foi um ato de bravura. Durante a transição da infância para a adolescência, saiu da casa dos pais e foi morar com o avô e a avó. Ele preferia ter que ajudar com os serviços, longe da escola e da casa dos amigos, com todas as dificuldades inerentes a morar com um senhor de idade avançada, do que àquela família. A família pertencia apenas ao pai. Aliás, pouco importava de quem era. Só não era de Eduardo.
Ele riu, imaginando o que seu pai faria, caso o visse assim. O gel no cabelo completava o visual. Ele tirou um algodão do saco, destampou o removedor de maquiagem e misturou os dois objetos. Era a terceira, talvez quarta vez, que a situação se repetia nesse mês. A tinta foi transferida do seu rosto para o algodão e o raio vermelho ia perdendo a força. Gastou três algodões e ligou a torneira, de olhos fechados, buscando o sabonete com as mãos. Se a pia fosse sete centímetros mais alta, Eduardo não precisaria curvar-se.
Encarou o rosto novamente. Dessa vez, com a cara limpa. Deixou o polegar em uma bochecha e os outros quatro dedos, em outra, sentindo a pele, lisa. Queria ter barba, igual a do avô. Permanecia imberbe, por causa de suas feições. Não combinava. Tinha cara de Dudu. Ju talvez tivesse tentado chamá-lo assim, mas não era preciso. O resto do seu corpo carregava influência demais, para que ele não estivesse perto. A boca dele, já era dos dois, mas cada um falava o que pensava. Ele olhava para o próprio nariz e lembrava-se dela, com um piercing fino, no lado direito. Eduardo brincava:
– Leonardo da Vinci dizia que é no nariz que o caráter se cria, no rosto. Tu tem tanta personalidade, Ju, que não coube só no nariz. Aí precisou de um acessório.
Ju podia chegar no meio da tarde, com um copo de café ou uma taça de champanhe. Eram tentativas de despertar. Apresentou-se à prima de Eduardo como namorada; aos amigos dele, como sua advogada; e quando conversou com a avó, meses após o início do relacionamento, respondeu:
– A gente está se conhecendo melhor.
Eduardo passou a vida tentando conhecer tanta coisa, principalmente as razões. Por que ele estava ali? Por que a arquitetura? Por que sua avó deixou o portão aberto naquele dia? Por que seus pais eram tão distantes, mesmo no quarto ao lado? Por que a ex, dona de tanta estabilidade, que ele sabia como o sexo iria começar e terminar, foi embora? Por que, quando a avó deixou o portão aberto, não aconteceu apenas um assalto? Por que seus amigos entraram na sua vida? Por que Maria Júlia? Por que?
Ju o conheceu no escritório em que ele trabalha. Seu projeto, um condomínio à beira-mar, acarretaria tantos problemas judiciais, que a construtora enviou suporte legal. Eduardo explicou para Júlia todas as implicações da edificação e ela deixou um número para contato anotado em um post-it amarelo, em cima da mesa. Era o telefone dela, não da empresa. Desde então, Eduardo tentava conhecê-la.
Ele entrou debaixo do chuveiro, embaçando o box e seus pensamentos. Queria aproveitar o silêncio incompleto, ajudado pela água caindo, para organizar-se. Entretanto, sempre que queria projetar algo, o nome de Maria Júlia vinha a sua cabeça. E que nome bonito… Não só de falar. De ouvir, de pensar, de sentir. Quanto mais ele reduzia o nome, mais gostoso ficava de sentir. Maria Júlia, Maju, até chegar em Ju, duas letras cheias de altos e baixos, nada muito certo, nada muito reto, mas com uma explosão de emoções em cada uma de suas curvas. Ju. Ela se opunha ao comportamento metódico dele. Então, Eduardo enrolou-se em uma toalha e saiu do banho.
Girou a maçaneta. Não havia passado a chave. Ju o esperava, sentada na cama, trocando os canais da televisão. Eduardo caminhou em sua direção e deu-lhe um beijo, daqueles que não importa há quanto tempo o casal está junto; os dois sempre ficam sem graça depois. Ele esperava um cafuné, pausado, com a paz deslizando pelos dedos, que talvez nunca chegasse. Eduardo a observou. Os cabelos, modulados pelo vento; o corpo, assim como o nome, cheio de curvas; o jeito de empilhar os travesseiros, para sentar, encostada na parede… Ju lastimava o fim do feriado. Deitado ao lado dela, consumando da liberdade definitiva, Eduardo sorriu. Percebeu: alguns carnavais nunca têm fim.